segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Língua Portuguesa - Parte 3

Introdução

Nesta oficina pretendemos dar alguns exemplos do uso de palavras que, sendo empregadas numa determinada classe gramatical, são usadas com outra classe, assumindo um novo sentido. Você vai perceber que, muitas vezes, esse uso diferenciado causa um certo estranhamento, que nós percebemos, mas nem sempre conseguimos identificar. Aqui, queremos mostrar de que maneira essa identificação acontece, e como essa percepção contribui para a aquisição de novas estratégias linguísticas.


Ilustração de dentista dizendo "Calma, já vai acabar. Como bom paciente, seja paciente!"


 Você já percebeu que, na fala do dentista, a palavra "paciente" aparece duas vezes. Em cada uma delas, o sentido é diferente, e a classe gramatical também. Essa possibilidade de utilizar a mesma palavra com classes diferentes faz com que a geração de sentidos crie enunciados de variadas intenções. Com relação, especificamente, à palavra "paciente", a mudança de classe e a consequente mudança de sentido permitem jogar com as diferenças.

Classes de palavras: uso diferenciado

É o que vamos observar, mais apuradamente, no texto que se segue, de Carlos Eduardo Novaes.

A cadeira do dentista

Fazia dois anos que não me sentava numa cadeira de dentista. Não que meus dentes estivessem por todo esse tempo sem reclamar um tratamento. Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a suar frio folheando velhas revistas na antessala e me escafedia antes de ser atendido. Na única ocasião em que botei o pé no gabinete do odontólogo - tem uns seis meses -, quando ele me informou o preço do serviço, a dor transferiu-se do dente para o bolso.
- Não quero uma dentadura em ouro com incrustações em rubis e esmeraldas - esclareci -, só preciso tratar o canal.
- É esse o preço de um tratamento de canal!
- Tem certeza? O senhor não estará confundindo o meu canal com o do Panamá?
Adiei o tratamento. Tenho pavor de dentista. O mundo avançou nos últimos 30 anos, mas a Odontologia permanece uma atividade medieval. Para mim não faz diferença um "pau-de-arara" ou uma cadeira de dentista: é tudo instrumento de tortura.
Desta vez, porém, não tive como escapar. Os dentes do lado esquerdo já tinham se transformado em meros figurantes dentro da boca. Ao estourar o pré-molar do lado direito, fiquei restrito à linha de frente para mastigar maminhas e picanhas. Experiência que poderia ter dado certo, caso tivesse algum jeito para esquilo.
A enfermeira convocou-me na sala de espera. Acompanhei-a, após o sinal-da-cruz, e entramos os dois no gabinete do dentista, que, como personagem principal, só aparece depois do circo armado.
- Sente-se - disse ela, apontando para a cadeira.
- Sente-se a senhora - respondi com educada reverência -, ainda sou do tempo em que os cavalheiros ofereciam seus lugares às damas.
Minhas pernas tremiam. Ela tornou a apontar para a cadeira.

- O senhor é o paciente!
- Eu?? A senhora não quer aproveitar? Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de tártaro? Fique à vontade. Sou muito paciente. Posso esperar aqui no banquinho.
O dentista surgiu com aquele ar triunfal de quem jamais teve cárie. Ah! Como adoraria vê-lo sentado na própria cadeira extraindo um siso incluso! Mal me acomodei e ele já estava curvado sobre a cadeira, empunhando dois miseráveis ferrinhos, louco para entrar em ação. Nem uma palavra de estímulo ou reconforto. Foi logo ordenando:
- Abra a boca.
Tentei, mas a boca não obedeceu aos meus comandos.
- Não vai doer nada!
- Todos dizem a mesma coisa - reagi. Não acredito mais em vocês!
- Abra a boca! - insistiu ele.
Abri a boca. Numa cadeira de dentista sinto-me tão frágil quanto um recruta diante do sargento do batalhão.
Ele enfiou um monte de coisas na minha boca e tocou o dente com um gancho.
- Tá doendo?
- Urgh argh hogli hugli.
Os dentistas são tipos curiosos. Enchem a boca da gente de algodão, plástico, secadores, ferros e depois desandam a fazer perguntas. Não sou daqueles que conseguem responder apenas movendo a cabeça. Para mim, a dor tem nuances, gradações que vão além dos limites de um sim-não.
- A anestesia vai impedir a dor - disse ele, armado com uma seringa.
- E eu vou impedir a anestesia - respondi duro segurando firme no seu pulso.

Ele fez pressão para alcançar minha pobre gengiva. Permaneci segurando seu pulso. Ele apoiou o joelho no meu baixo ventre. Continuei resistindo, em posição defensiva. Ele subiu em cima de mim. Miserável! Gemi quase sem forças. Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa. Lembrei-me de Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça. A agulha penetrou a poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto. Ele voltou com a seringa.
- Não pense que o senhor vai me anestesiar como anestesia qualquer um - disse, dando-lhe um tapa na mão.
A seringa voou longe e escorregou pelo assoalho. Corremos os dois pra alcançá-la, caímos no chão, embolados, esticando os braços para ver quem pegava a seringa. Tapei-lhe o rosto com meu babador e cheguei antes. A situação se invertera: eu estava por cima.
- Agora sou eu quem dá as ordens - vociferei, rangendo os dentes. - Abra a boca!
- Mas... não há nada de errado com meus dentes.
- A mim você não engana. Todo mundo tem problemas dentários. Por que só você iria ficar de fora? Vamos, abra essa boca!
- Não, não, não. Por favor - implorou. Morro de medo de anestesia.

Era o que eu suspeitava. É fácil ser corajoso com a boca dos outros. Quero ver continuar dentista é na hora de abrir a própria boca. Levantei-me, joguei a seringa para o lado e disse-lhe, cheio de desprezo:
- Você não passa de um paciente!


Jogo de palavras

No texto de Carlos Eduardo Novaes, há mais de uma ocorrência da utilização de uma determinada palavra com classes diferentes. Uma delas, e a mais flagrante, é, como já dissemos, a palavra "paciente". Ela é usada num jogo de palavras em dois momentos do texto: o primeiro, quando o narrador oferece a cadeira à atendente, que lhe diz " O senhor é o paciente!" , ao que ele retruca "Fique à vontade, sou muito paciente"; o segundo, no final do texto, quando o narrador, ao constatar o medo do próprio dentista em relação à anestesia, atesta "Você não passa de um paciente!"
Vamos aos poucos. No primeiro exemplo, a fala da enfermeira traz a palavra "paciente" como substantivo, que significa "aquele que será atendido por médico ou dentista". A resposta do personagem, contudo, já utiliza a palavra como um atributo, com o sentido de "aquele que tem paciência". A mudança de classe - de substantivo para adjetivo - possibilita a mudança de sentido que, no caso do texto, leva a um jogo de palavras. No segundo exemplo, o uso torna-se ainda mais complexo. Repare que, antes de julgar o dentista como apenas um "paciente", o personagem faz a seguinte afirmação:"Quero ver continuar dentista é na hora de abrir a própria boca." O jogo de palavras, aqui, tem o objetivo de remeter a um significado diferente do que elas normalmente têm. Dentista equivale a corajoso, em oposição a paciente, que, pela leitura do texto, passa a significar covarde. Dentista e paciente, substantivos que, originalmente, têm um determinado sentido, passam, no texto, a adjetivos com sentidos equivalentes aos de outras palavras - no caso, corajoso e covarde.
Trata-se de um uso estilístico, mas nada impede que você ou seus alunos queiram criar jogos de palavras e usos desse tipo em seus textos. Como sabemos, o importante é que se saiba em que momento usar o quê, ou seja, tudo depende da adequação.
As palavras que "pulam" de uma classe para outra mostram que não há como cristalizar classificações, embora essas palavras continuem sendo utilizadas dentro de uma determinada lógica semântica. Veja, agora, o que Caetano Veloso faz num trecho da música "O quereres":

(...)
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e o que não há em mim.
Na música de Caetano Veloso, o desvio é total quando, em vez de o verbo "querer" assumir o papel do substantivo, esse papel é desempenhado pela forma verbal conjugada "quereres", o que também ocorre com "estares". Ao lançar mão desse uso, o compositor torna absolutamente pessoal o substantivo querer, que deixa de ser um desejo - significado que a palavra assume quando substantivo - para ser o desejo da pessoa com quem ele fala. Assim, "o quereres" e "o estares" são substantivos que expressam o desejo do outro, que é o interlocutor do poeta. A norma-padrão prevê a existência de "querer" como verbo e como substantivo, mas o "infinitivamente pessoal" quereres não está nessa previsão. Entretanto, ele faz absoluto sentido quando usado dessa forma.

As palavras se revelam?

 

A constatação de que as palavras não pertencem, rigorosamente, a uma determinada classe gramatical nos ajuda a compreender melhor por que não é útil para o aluno memorizar nomes e conceitos. Se podemos criar novas formas de utilização das palavras, e se a classe das palavras varia de acordo com essas formas de utilização, então é preciso que se saiba utilizá-las de várias maneiras, e, principalmente, entendê-las em seus múltiplos empregos. Essa funcionalidade faz parte das estratégias de aquisição das estruturas linguísticas que buscamos utilizar com nossos alunos, sem que precisemos bombardeá-los com nomenclaturas que não colaborarão para que eles usem melhor a língua.
Nesse sentido, podemos dizer que os desvios em relação à norma-padrão podem ser voluntários, ou seja, pode-se querer lançar mão de um uso não previsto pela norma-padrão quando se tem um objetivo como o que analisamos nos textos "A cadeira do dentista" () e "O quereres" (). Isso nos ajuda a perceber que desvio não é erro - e isso nós já discutimos em aulas anteriores. O que aqui queremos deixar claro é que o desvio pode não ser, simplesmente, a assimilação de uma forma da oralidade que se vai legitimando pelo uso, mas constituir uma opção de uso na fala ou na escrita visando a um objetivo específico.
A opção por um uso que se desvie da norma-padrão representa um fato linguístico altamente relevante, pois traduz a necessidade que o falante tem de gerar novos sentidos para novos enunciados. Essa necessidade não é nem tem de ser exclusividade de escritores e poetas. Nossos alunos, como usuários da língua, podem querer jogar com as palavras e seus sentidos, e cabe a nós instrumentalizá-los para que se vejam aptos a lidar com a língua de maneira menos normativa e mais gerativa.
As pistas para esse caminho estão lançadas: leitura, antes de mais nada; escrita, sempre. A percepção da organização das palavras e das relações de dependência entre elas deve ser resultado do contato com a língua via textos. As frases soltas, descontextualizadas, em que as palavras aparecem sempre aprisionadas nas mesmas classes e sem nenhum desvio - até porque, fora de contexto, o desvio perde o sentido - não contribui para que o aluno se torne proficiente no exercício de usar as palavras a seu favor. Ao dizer isso, não queremos, de maneira alguma, que o uso da língua seja instrumento de poder, mas de um poder especial, que é o de poder compreender e o de ser compreendido - dominar a língua, em vez de sentir-se dominado por ela.
 Resumo
Vimos que as palavras não estão presas numa mesma classe gramatical. Lemos textos que demonstram o uso estilístico do desvio em relação à norma-padrão. Encaminhamos, por fim, uma reflexão a respeito da capacitação de nossos alunos no que diz respeito ao uso da língua.

Referências bibliográficas:

NOVAES, Carlos Eduardo. Apud: Linguagem Nova. 7ª série. São Paulo: Ática, 2002.
VELOSO, Caetano. Caetanear. Polygram.

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